Quinta-feira, 19 de Maio de 2005

AINDA O LUTZ E O PCP

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Caro Lutz,</b>

Qual embirração qual carapuça! Valorização excessiva de buril no cristal da semântica, talvez. Mas, digo, todos os males fossem esse que o que interessa é um bom pretexto para uma boa conversa.

No seu último post você tem razão. Ou, então, esquivou-se à maneira. Eu falei no ressentimento social e na canalização desse ressentimento, o Lutz fala-me na camada de seu contacto. Para facilitar, digamos que se referia ao eleitorado PCP de função “intelectual”, pelo menos, letrada e informada o suficiente sobre o mundo para não se deixar embarretar sobre a história dos malefícios do centralismo democrático. Boa malha. Porque de facto se trata de outro mundo, embora em comunicação de vaso com os deserdados da sorte.

Deixo-lhe, sobre este sub-tema, algumas reflexão como desafio ao seu contraditório:

Primeiro. Uma parte da intelectualidade de esquerda herdou a cultura do Antifascismo (digamos que é muito, demais e ainda, uma esquerda neo-realista) dos tempos em que muita da defesa da cultura, perante o vazio espalhado pelo nosso fascismo boçal e clerical, se panfletava, muitas vezes com enorme talento e excelente disfarce, de defesa de uma causa.

Segundo. O antifascismo, por vontade de identidade e de acção, levava ao Partido. Não se dizia, e em muitos círculos ainda não se diz, o PCP mas sim O Partido. Claro que não havia só o PCP a lutar contra o fascismo mas o grande sacrifício, a grande organização, a grande resistência, os maiores heróis, os mais generosos, os das horas boas e más, estavam no PCP. E para onde quer que um antifascista se virasse na vontade de luta acabava por encontrar uma asa do PCP a dar-lhe ninho e instrumento de luta. Difícil era resistir a esse abraço com um punho levantado que fazia a ponte com a parte segregada e sofredora da sociedade, com as massas. O PCP era, ainda é para alguns, a “família” e a “pertença” de que lhe falou o Miguel. São poucas e honrosas as excepções dos intelectuais que conseguiram um percurso de luta contra o fascismo nas margens do PCP.

Terceiro. O PCP foi e é uma mescla de várias componentes. Entre outras (menores):
– Um operariado (industrial e agrícola) dorido por uma terrível opressão e vindo de estruturas económicas caducas mas protegidas pelo Estado criado por Salazar, de qualificação ao nível da supremacia do trabalho manual, pouco qualificado, cuja socialização, culturalização e politização se faziam pelo Avante, uma biblioteca básica e pelos saraus neo-realistas das colectividades (a alternativa estava na taberna ou na prédica das sotainas). E o Lutz deve saber que, segundo a cartilha, quem estivesse acima desta bitola entrava automaticamente na categoria desconfiante da aristocracia operária, em que a ascensão social e uma maior formação eram vistas como passagem ao reino da terra de ninguém da luta de classes, desqualificando-se em qualidade de firmeza no combate. É esta componente que está na origem do PCP (vindo da corrente anarco-sindicalista), se estruturou na liderança de Bento Gonçalves (o paradigma do operário bom, culto e combativo) e desembocou na regra de oiro da maioria operária na direcção do PCP (hoje, uma completa falácia).
- Uma camada intelectual que fazia cultura na luta (e a isso empurravam a Censura e a PIDE) com a luta no PCP e no seu marxismo-leninismo. Num Partido de representada matriz operária, aquela matriz operária, os intelectuais comunistas cumpriam-se duas funções – por um lado, davam arte e literatura à luta, exprimindo-se no underground do antifascismo; ao mesmo tempo que se redimiam, purgando-se, da sua origem social numa das classes (a inimiga) da dicotomia. No PCP, um intelectual encontrava a luta e o purgatório da sua via sacra a caminho da proletarização, largando a pele do seu pecado original enquanto classe. Tanto que, a mais das vezes, os intelectuais do PCP eram, e são, os mais obreiristas na matriz obreirista da casa. Porque o excesso atalha percursos. E é um casal perfeito um masoquista nos braços de um sádico.

Quarto. Passado o tempo da direcção de Bento Gonçalves, com Cunhal e a réplica serôdia de Carvalhas, a direcção do PCP esteve entregue a intelectuais com um círculo próximo de sustentação de poder interno dominado por fiéis e medíocres que ascenderam na ala operária no tempo da reorganização e da cunhalização do Partido. Entre outros muitos méritos, Cunhal teve o génio de fundir a mescla da composição do PCP, dando-lhe uma identidade de exército de combate de que ele era o Generalíssimo e em que salientou, para consumo interno, a sua ligação profunda às dicotomias da realidade portuguesa e tornando inquestionável a fidelidade sem limites e sem crítica ao PCUS. A herança teórica e intelectual de Cunhal é fraquíssima porque Cunhal foi, sobretudo, o génio da cristalização, da simplificação e da expressão atávica de um marxismo-leninismo português. Mas Cunhal era, além de decidido, corajoso e implacável, um intelectual culto e mestre da mistificação e dos jogos de aparências e da duplicidade. Com Cunhal no poder, ou Cunhal como eminência parda com o fascínio da sua distância pela doença e pela velhice, um intelectual comunista realizava-se e realiza-se, nessa qualidade, através de Cunhal. Quanto ao epifenómeno de Jerónimo, como homem de palha para enfeitar um vazio, ele vale o que vale para o PCP – um tempo de espera em teatro de revista da contestação enquanto se aguarda a hora da orfandade e luto por Cunhal que faz antecipar lágrimas de dor ao mais empedernido e duro militante.

Quinto. Desde o fascismo e a guerra fria, todos os militantes do PCP foram educados no respeito sagrado pela União Soviética e pelo socialismo real. Questionar os bastiões, admitir dúvidas, era claudicar face aos grandes inimigos – Salazar, Estados Unidos, Mário Soares. Para os operários em luta, o remédio era pensarem na próxima greve por melhores salários e como se defenderem da PIDE. Para os intelectuais, era o fascínio pela escolha das fontes, pondo de parte o que fizesse vacilar, a capacidade de olhar sem ver o que se vê, purificar-se entre as tentações, preferir a auto-flagelação da sua origem de classe à subida de risco ao ecletismo e ao espírito crítico.

Sexto, último e mais importante. O PCP tem a suprema glória e proveito de poder de atracção por nunca ter sido poder e que só podia ser poder único. Isso dá-lhe a capacidade de beatificação de se pensar que o PCP, este PCP, o PCP da luta e dos oprimidos, o PCP forjado no combate ao fascismo, ser o PCP a quem devemos a liberdade e a democracia, o PCP que só libertou e nunca iria oprimir. E, neste estado de inocência, vá-se lá dizer ao militante, ao crente na pureza do PCP, que o PCP no poder faria como os outros, porque não há nenhum que consiga fazer diferente – primeiro, enfiava reaccionários, agentes da CIA e sabotadores na prisão, limpando o sebo a uns tantos deles; depois os contra-revolucionários; a seguir, uma parte dos comunistas crentes; finalmente, quem quer que quisesse usar a liberdade mesmo que em dose mínima. Sobretudo, aos intelectuais habituados aos seus ópios. Até porque cada intelectual é um intelectual, ele precisa do seu tempo próprio de decantação. Como não são Poder, deixemo-los poisar, pensando por eles, cada um fazendo as suas sínteses entre inteligência, reflexos condicionados, medo de perda de laços, informação e preconceitos, reconstruindo a sua praxis. Apelo-lhe à paciência, caro Lutz. É a história, meu caro, é a história. E a política, enfim.





















publicado por João Tunes às 16:48
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De Joo a 20 de Maio de 2005 às 15:44
Ó Raimundo,aquilo não são hieroglifes, são adobes. Obrigado Miguel pela excelente achega.


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