Nos anacronismos maiores da legislação concernente à plenitude dos direitos dos vivos, está o maior de todos os direitos que um vivo devia ter a renúncia a viver. É como recusar o direito a votar em branco numa eleição. Uma aberração, porque a liberdade de expressão de uma vontade tem de pressupor, não uma fatalidade, mas uma opção de entrada entre escolha ou não escolha. Desde logo, o resto vem por acréscimo.
Os tabus religiosos, mesmo na sociedade mais laica, são dos atilhos mais rijos que amarram a liberdade humana. No caso, pressupõem a
obrigação de viver como se a vida nos fosse exterior, uma dádiva recebida de que não se dispõe de liberdade para a movimentar. A intangibilidade e incerteza do seu termo que tem de reproduzir o contexto do nascimento. Mesmo que a vida seja um calvário de sofrimento.
Sabe-se como o suicídio é julgado socialmente. Um choque a merecer um silêncio que lhe corte a subversão dos costumes. Mas apesar do ónus com que o acto é julgado, este ainda beneficia de uma certa consideração cultural pela
heroicidade suposta da decisão e da consumação. Um suicida, apesar de tudo, ainda é um gajo com tomates. Até porque cometeu um acto insólito na vida dos vivos vividos. O suicida é um herói negado mas herói, mesmo assim.
A eutanásia gera repulsas e silêncios. Pedi-la é julgada como própria do suicida cobarde. Ou seja, o mais cobarde dos cobardes. O critério de inumano aplica-se-lhe sobretudo. Sai fora da escala do suportável. Aliás, compare-se a maior aceitação do aborto (em que existe outra vida em jogo) com a repulsa pela eutanásia ou o silêncio para com ela.
E, no entanto, que mais de humano existe, quando a vida é insuportável, pedir o apoio aos humanos com gosto de viver, a ajuda - através da suprema fraternidade - de se deixar de viver? Em nome da vida.