
Não podem haver assuntos tabú a meter para baixo do tapete. Mesmo que a brutalidade de um protagonista nos puxe para concentrar nele a repulsa maior, tornando-a única. Dá mau resultado esquecer, sobretudo por não se querer lembrar e perceber. Mais tarde ou mais cedo, os armários cedem ao peso do escondido. E uma injustiça para com a memória dá direito a pesadelo certo e tardio, ampliado de ressonância, indevida na boleia da vingança do silêncio.
A importante efeméride do fim da mais mortífera guerra que espalhou cinza e morte na Europa anda por aí, celebrada, a pretender equilíbrios da distância no tempo, a ajustar contas com mitificações propagandísticas, ressuscitando dogmas e dando aso a revisionismos, levantando alçapões para todas as catacumbas. As enormes delegações de governos e povos que celebram aqui e ali, mais acolá, ecoando reconciliações, uma vez por outra reabrindo feridas não saradas, dão um toque mundano à efeméride, as cores dos desfiles e das rugas medalhadas dos veteranos impressionam pelo respeito merecido da nossa gratidão. A liberdade que devemos ao fim do Reich deve ser levada até ao fim. A verdade não pode ficar a meio caminho. Nem as injustiças a reparar. Esta, parece-me, a melhor forma de celebrar o que Hitler quis tirar ao mundo a liberdade. Usemo-la. Só assim apagamos o fantasma de Hitler.
Leio o muito que se tem escrito sobre os refugiados alemães escorraçados na hora da derrota (sobretudo vindos da Checoslováquia, da Polónia e da Hungria). E que hoje, somando-lhe os descendentes, representam qualquer coisa como um quarto da população da Alemanha. Muito se fala dos seus martírios, às mãos dos vencedores e dos vencidos quando estes ainda disparavam, depois mal tratados pelos seus. E, por paralelismo, não posso deixar de me lembrar dos nossos retornados. Do respeito que sempre me mereceram, da forma como foram reintegrados, das feridas que ficaram, da dificuldade em olharem com os olhos da história, dos ressentimentos à flor da pele prontos a disparar uma navalhada.
Os retornados alemães merecem um olhar justo. Duvido que tenham a reaver o quer que seja, pois foram desocupados do que ocuparam. E serviram, muitas vezes na vanguarda do domínio e da ignomínia, a causa da conquista, da morte e da destruição. Os alemães da Silésia e das Sudetas, entre outros, na sua maioria, não têm uma história limpa para contarem. Devem manter, por isso, a timidez crítica ao levantarem os bicos de pés perante a desventura da história e da correlação de forças que forçaram até não mais poderem ao serviço de Hitler. Mas, os vencidos merecem a dignidade de serem olhados como vencidos humanos. Os seus tormentos, a sua odisseia, é um capítulo que não pode ser apagado da brutalidade da guerra, uma guerra que a maioria deles ajudou mas que nem isso, a meu ver, retira o direito às lágrimas das suas dores. Que são dores de um erro, erro terrível, mas, como erro, não deve permitir esquecimento nem desculpa. Vencidos há sessenta anos, estes escorraçados que ficaram na última escala dos vencidos, merecem, sem revisionismo, o respeito distante dos vencedores. Eu não lhes perdoo mas respeito-os.
Ao repúdio pela guerra, repudiando os agressores, eu acrescento o repúdio pela brutalidade, umas vezes inevitável e outras por sadismo, com que os vencedores fazem pagar a conta aos vencidos. Porque, num caso e noutro, está sempre presente o absurdo da malvada guerra, talvez a única coisa relativamenta à qual todos os ódios pecam por defeito.