Terça-feira, 22 de Março de 2005

MADRID MAIS LIMPA (2)

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Um comentador (Alex) de um post aqui colocado sobre a retirada da última estátua de Franco de uma praça de Madrid, opinou assim:

“Franco faz parte da História de Espanha, concorde-se ou não com a figura. Nada resolve esconder um passado.”

Este comentário questiona o acto de anular os vestígios monumentais ou toponímicos dedicados à exaltação do ditador ou das celebrações ditatoriais, depois de se dar a transição de um regime ditatorial para a democracia. Uma polémica sobre o mesmo tema tivemo-la aqui, entre portas, a seguir ao 25 de Abril de 1974 (sobre a mudança de designação da ponte sobre o Tejo, retirada de estátuas de Salazar e Carmona, etc). E volta e meia, os pruridos, sob o verniz da isenção e procurando abrigo do manto da História, voltam à tona. Umas vezes, o argumento é uma exibição de ingenuidade. Outras, não passa de suspiros dos nostálgicos da ditadura.

Entrando pela História mesmo, convém assinalar vários dados sobre o comemorativismo ditatorial que as ditaduras derrotadas legam aos sucessores:

1º) Os cultos dos ditadores (e não há ditador que não manche as mãos de sangue e as não tenha musculadas pela ginástica de esganar a liberdade) e das ditaduras são sempre actos de violência e agressão públicas, na exacta medida em que pretendem celebrar a subjugação de um povo e dar sinal da sua eternização. Cumprindo duas funções – servir de culto à minoria de apoio à ditadura e funcionar como símbolo castrador dos subjugados. As estátuas e toponímias espalhadas por toda a Espanha de culto ao Generalíssimo eram uma forma violenta e pública de propagandear perante o povo espanhol que o fascismo espanhol seria eterno, ou seja, a democracia tinha morrido em Espanha para sempre. Ali como, noutros lugares, com Hitler, Mussolini, Salazar, Lenine, Estaline, Dimitrov, Kim Il Sung, etc, ao serviço de outros géneros de fascismos ou aos seus simétricos.

2º) Com a instauração das ditaduras, as alterações toponímicas fazem-se por substituições que anulem a memória anterior de factos e figuras do passado que não seja integrado propagandisticamente no ideário autoritário. E, nisso, são implacáveis e estão nos primeiros actos públicos de afirmação ditatorial. Assim, uma grande parte do memorialismo que as ditaduras deixam como herança, ele não é original, existiu antes uma outra memória que foi apagada e substituída. No caso de Espanha, constou dos primeiros actos de ocupação fascista de qualquer localidade (desde as grandes cidades aos pueblos) a substituição pelos falangistas da designação da rua que celebrava a implantação da República Espanhola passando-a para “Calle Generalíssimo”. E a seguir tudo era substituído que referisse figuras da cultura e da política democrática, colocando-se no seu lugar designações de dignatários fascistas, feitos franquistas ou alusões religiosas católico-romanas. A razia foi de tal monta que, só não era toponímia ou monumentalidade fascista, o que remetesse para o passado da Espanha Imperial (Reis, Batalhas, El Cid, Cardeais), ou seja, aquilo que se integrasse numa ideia de falsa continuidade histórica desde os Reis Católicos até Franco, anulando qualquer vestígio que supusesse que Espanha tinha tido uma República e uma democracia e homens de cultura que não se tinham ajoelhado ao reaccionarismo hispânico.

Não há, pois, qualquer legitimidade que sustente a manutenção memorialista ditatorial de expressão pública, quando a democracia se instala ou regressa. Resta o argumento do facto consumado quando os factos foram impostos pela força e em afronta a outras memórias, prolongando a agressão de afirmação violenta do poder ditatorial. Deixar permanecer em todas as localidades de Espanha a inevitável “Calle Generalíssimo” (e muitas ainda restam onde o poder local é exercido pelas alas mais direitistas-fascistóides do PP) e a também inevitável “Calle José António”, mais umas tantas Calles Legion Condor, mais os milhares de estátuas, bustos, medalhões e placas de celebração da vitória da ditadura de Franco, não é conservar a História mas sim perpetuar uma violência e uma manipulação histórica. E, neste sentido, uma agressão pública aos sentimentos democráticos, a negação aos espanhóis em conviverem com a verdade histórica, obrigando-os a eternizarem o convívio com o lixo da celebração da opressão. Por outro lado, todos sabemos que os monumentos que restavam e restam de evocações de Franco eram e são aproveitados pelos saudosistas franquistas para as suas arruaças de provocação ao regime democrático.

Mas concordo com o Alex que “Franco faz parte da História de Espanha” e que “nada resolve esconder um passado”. E deixe estar que os espanhóis não esquecem, apesar do tanto que foi feito para que isso acontecesse. A estatuária (e o resto da tralha glorificadora) de Franco terá o seu lugar em museus espanhóis dedicados ao seu sangrento regime. E se for avante a proposta do Juiz Garzón para a constituição de uma Comissão que averigúe os crimes do franquismo e responsabilize criminalmente os que cometeram actos de violência contra os direitos humanos e de propriedade ao abrigo da desordem franquista, ressarcindo as vítimas do franquismo, então, melhor que mil estátuas, Franco encontrará o devido lugar que merece na História de Espanha.

Entretanto, apetece-me mais que nunca passear em Madrid. Porque a sinto mais limpa, sem o lixo da violência e da opressão na agressão pública da exibição do assassino Franco a cavalo no poder. E, um dia destes, Santander também ficará mais higiénica - quando se libertar da estátua gémea que poluía Madrid e que por lá ainda sobra.

(na imagem, soldados franquistas, após conquistarem uma localidade que estava no poder dos republicanos, arrancam uma placa toponímica com a data da implantação da república espanhola para a substituírem por outra exaltando Franco)



















publicado por João Tunes às 23:51
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De L. a 23 de Março de 2005 às 15:02
Sei de uma rua, existe de facto, de nome, Ant. Oliv. Salazar. A placa lá continua, numa esquina. No entanto, desde o 25 de Abril, esta rua é denominada por Rua da Estação (entenda-se Estação do Caminho de Ferro). A placa lá continua e mal será, que voltem a chamar à rua o nome que ela ostenta. Por mim preferia que a tal placa fizesse parte do espólio de um qualquer museu.
Apenas por curiosidade, esta questão da eliminação dos vestígios de regimes anteriores, mais ou menos odiosos, é velha como as civilizações, basta lembrarmo-nos das estátuas, pinturas do antigo Egipto e outras civilizações. O novo poder normalmente elimina o que lembra o anterior. Isso aconteceu em Moçambique. Mouzinho foi derrubado e segundo penso, estará guardado na Fortaleza em Maputo, juntamente com outras obras do tempo colonial. Mas até Gago Coutinho sofreu o mesmo tratamento. Inevitável...


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